Design com alma brasileira: ex-aluna da Panamericana se reinventa com projeto inovador

Maria Fernanda Paes de Barros criou a Yankatu, empresa de design de mobiliário e objetos de decoração artesanais com impacto social, que valoriza o artesanato brasileiro

Impedida de viajar pela chegada da pandemia de coronavírus ao Brasil, Maria Fernanda Paes de Barros precisou reinventar seu ‘modus operandi’ para dar continuidade ao trabalho que mal havia começado junto à aldeia indígena Kaupüna, da etnia Mehinako, no Xingu. Idealizadora da Yankatu – um projeto de design de mobiliário e objetos de decoração artesanais com impacto social -, a designer costuma se locomover às comunidades de artesãos com as quais trabalha, para junto com eles criar produtos que contem as histórias de vida de cada um. A ideia é que cada peça seja única e atemporal, traduzindo assim a essência da identidade brasileira.

A impossibilidade de trabalhar ao lado dos artesãos de maneira presencial, porém, não foi suficiente para que Maria Fernanda desistisse de seguir em frente com o seu projeto no Xingu. Fazendo uso da tecnologia, a designer tem se comunicado com os artesãos por meio do computador e do telefone, com a ajuda do amigo Kulikyrda Mehinako, apelidado de Stive. “Eu fui ao Xingu dar início ao projeto em dezembro do ano passado e deveria ter voltado em abril. A pandemia me pegou, e não pude voltar. Mesmo assim não parei com os trabalhos. Eu precisei mudar todas as logísticas, mas não poderia frustrar as expectativas dos artesãos. O mundo já está tão complicado e eles dependem da continuidade do trabalho para ganhar dinheiro”, conta ela.

Após algumas trocas de mensagens e coletas de matérias primas, com os devidos cuidados de saúde tomados e com o auxílio da pesquisadora botânica Maibe Maroccolo, Maria Fernanda e os artesãos criaram a cartela de cores da coleção que estão desenvolvendo, com base nas folhas e cascas das árvores utilizadas na construção, artesanato e rituais na aldeia. “Com as tintas extraídas das matérias primas da aldeia, tingimos fios de algodão que foram enviados metade para mim e metade de volta para a aldeia. Com eles, as mulheres da Kaupüna estão tecendo uma esteira, que será usada em um móvel da coleção. Elas também me mandaram aulas em vídeo gravadas pelo Stive, ensinando como tecer uma esteira, para que eu possa fazer a minha aqui em São Paulo. Normalmente a gente faz isso junto, mas essa foi a solução que encontramos nesse momento. É muito lindo perceber o quanto essa continuidade do trabalho foi importante para eles, tanto emocionalmente, quanto financeiramente. Eu já mandei para o Xingu o dinheiro de uma parte da esteira e eles resolveram comprar comida suficiente para não precisarem sair da aldeia nessa situação por pelo menos 15 dias. É muito emocionante saber que a gente pode proporcionar isso nesse momento difícil”, diz a designer.

Essa não foi a primeira vez que Maria Fernanda precisou se reinventar durante sua trajetória profissional. Formada em administração, ela nunca chegou a trabalhar no mercado corporativo. Ainda na faculdade, a designer reformulou um apartamento inteiro, comprado na planta pelo então noivo, chegando a discutir as alterações com o engenheiro responsável, sem nunca ter estudado arquitetura, o que, aliás, era sua real vontade. “Eu venho de uma família simples e precisava de uma profissão que pudesse me bancar, por isso troquei a arquitetura pela administração na hora de escolher a faculdade. Quando me vi desenhando em cima das plantas do apartamento, desde a paginação de piso até o desenho de forro e toda a marcenaria, sem nunca ter mexido com isso na vida, eu entendi que eu estava no lugar errado”, relembra ela.

O apartamento modificado ficou ótimo e a então administradora resolveu deixar seu diploma recém adquirido na gaveta e foi estudar Design de Interiores em duas escolas diferentes, na Panamericana e na FAAP: “Fiz os dois cursos com visões bem diferentes. Na Panamericana eu tive algo que serviu de base para o meu trabalho, que é a prática. Apesar do foco ser a parte da criatividade, você também aprende como organizar aquilo, como apresentar aquilo, os passos que você tem que seguir. Aprendi a entender os processos, desenhar corretamente. Então a escola me deu essa estrutura, as ferramentas que eu sempre usei para criar a partir dali. E desde então eu passei a trabalhar com projetos de design de interiores. Eu nunca trabalhei em nenhum escritório, eu sempre trabalhei como autônoma, montei meu próprio escritório. E foram mais de 20 anos nisso”.

Em 2013, com uma sólida carreira de designer de interiores já construída, Maria Fernanda sofreu uma estafa mental que a fez se reinventar mais uma vez: “Minha sócia precisou se mudar para Santos e eu fiquei com todas as obras do escritório sozinha. Meu tio querido faleceu, meu pai adoeceu… Sabe aquele ano que sua vida vira de ponta cabeça? Foi bem sério, eu perdi minha capacidade de raciocínio. Minha sorte é que eu tinha uma equipe muito boa, que estava comigo há anos, e eles seguraram as obras que estavam acontecendo. Eu sou muito certinha, perfeccionista, detalhista ao extremo e essa responsabilidade pesou. Quando percebi que poderia ter deixado pessoas na mão, decidi que queria trabalhar com algo que talvez tivesse menos responsabilidade. Larguei meu escritório e resolvi procurar um novo curso”.

Foi nesse momento que a designer voltou à Panamericana, desta vez para estudar Design de Mobiliário, e terminou encontrando sua verdadeira vocação. “Essa segunda ida à Panamericana foi realmente um divisor de águas na minha vida e na minha carreira. Até hoje agradeço o Ricardo Schirmer, professor do curso. Ele trabalha de uma maneira completamente diferente do que eu imaginava. Fui pra escola imaginando que eu iria entender como funcionava a indústria, uma série de materiais e me deparei com outra proposta. Ele pediu pra gente deixar os computadores de lado por um tempo e encontrarmos a nossa identidade. Desenvolvemos um briefing, que na época era para a Girona, e tivemos que trabalhar uma série de palavras até chegar à palavra prazer. A desconstrução da palavra prazer seria descobrir o que ela significava para cada um dos alunos. Foi nessa busca que eu me encontrei. Ali eu descobri que o prazer para mim era me encontrar na mata, na floresta, na natureza brasileira, no Pantanal, na Amazônia, em contato que essa cultura que a gente tem, com esse artesanato riquíssimo. Esse encontro com essa minha essência me fez entender que eu queria trabalhar com isso. Que na verdade eu nunca tinha sido uma arquiteta frustrada como eu imaginava, porque eu sou das pequenas coisas, dos detalhes, dessa relação humana. Então a partir daí as coisas começaram a acontecer.”, conta ela.

Depois de ganhar menção honrosa por seu projeto para a Girona, ainda na Panamericana, com a criação da linha Tribos, inspirada no artesanato indígena, Maria Fernanda não parou mais. Hoje reconhecida internacionalmente, a Yankatu nasceu do desejo de fazer design com alma, de, a cada ano, mostrar a beleza, a riqueza, o valor e as possibilidades do artesanato de uma região, de uma comunidade, de uma técnica diferente. “A Yankatu, antes de mais nada, é o meu propósito de vida. Ela é uma empresa privada de impacto social. O que eu procuro fazer acima de tudo é realmente ser uma ponte e abrir os olhares tantos dos brasileiros para a própria cultura, como  do mundo para as possibilidades que o nosso artesanato tem. Ela vai muito além do design de produto. Ela trabalha a parte da autoestima e da criatividade. Porque o artesão, muitas vezes, faz sempre o igual porque o igual está vendendo e ele tem medo de arriscar. Eu acredito na soma, eu não interfiro no trabalho dos artesãos, a técnica é deles, o saber é deles. Eu invisto em um outro tipo de trabalho, eu quero que a identidade deles esteja presente também ali. Isso pra mim não tem preço. Poder ser a pessoa que joga luz no trabalho do artesão é o maior propósito da Yankatu”, explica.

Totalmente realizada com a Yankatu, Maria Fernanda é muito bem sucedida em seus propósitos e teve seu trabalho reconhecido recentemente pela publicação suíça AS Architecture Switzerland, que é referência no mercado. Para quem pensa em fazer uma transição de carreira, seguir seus sonhos e se reinventar, o conselho da designer é o de seguir em frente sem medo. “É muito importante você fazer algo que realmente gosta. É claro que o dinheiro é necessário, a gente tem que pagar as contas. Mas a partir do momento que você faz algo com o que você realmente se identifica aquelas horas que você se dedica não serão tão cansativas. Quando eu fiz a mudança do Design de Interiores para o Design de Mobiliário, e tive a ideia de viajar pelo Brasil e ir atrás de artesanato, eu fui bastante questionada. Porém, se eu tivesse me deixado levar pelo que grandes amigos queridos me disseram na época, eu não estaria aqui hoje.  Não é fácil, não é nenhum mar de rosas, eu abri mão de uma série de coisas, mas continuei no meu caminho, e valeu a pena cada passo. Nossa como vale cada passo! A gente tem que se libertar da mesmice e das caixinhas. Hoje eu me sinto totalmente realizada com a Yankatu, tanto pessoalmente quanto financeiramente. Vivo bem fazendo o que amo, da maneira que escolhi. É isso o que eu desejo para todo mundo. Que se encontrem!”, finaliza ela.

Gostou? Compartilhe!